Por que nos apaixonamos por uma cópia da mãe ou do pai
Você está tomando café com uma amiga e ela reclama do namorado mais recente: “Ele é igualzinho ao meu pai – vive criticando e depois some o dia inteiro”. Você concorda com a cabeça porque já notou algo parecido nos seus próprios relacionamentos. Ou lembra de uma ex que agia exatamente como a sua mãe na infância – com as mesmas frases do tipo “você nunca escuta”. Coincidência? Não, não é. Psicólogos perceberam há muito tempo: frequentemente nos atraímos por parceiros que lembram nossos pais, especialmente quando ficaram pendências não resolvidas com eles. De forma inconsciente, tentamos “reescrever” os roteiros da infância, lidar com a dor que não largamos quando crianças. Vamos entender como isso funciona, por que acontece e o que fazer a respeito. Vou explicar de forma simples, com exemplos da vida real e da ciência, para que você se reconheça ou reconheça alguém próximo.
De onde vem essa atração: os fundamentos do mecanismo psicológico
Tudo começa na infância. Nossos pais são as primeiras pessoas que moldam nossa ideia de amor, confiança e conflitos. Se o relacionamento com eles foi quente e estável, buscamos algo parecido nos parceiros. Mas se houve problemas – por exemplo, o pai era emocionalmente frio, a mãe supercontroladora ou um dos dois sumia com frequência –, essas feridas não desaparecem sozinhas. Elas se escondem no inconsciente e influenciam a escolha do parceiro.
Psicólogos chamam isso de imprinting (do inglês imprint – marca) ou atração repetitiva. A ideia é simples: o cérebro tenta “consertar” o passado. Você escolhe alguém parecido com a figura parental problemática porque quer, enfim, receber o que não recebeu na infância. Por exemplo, se a mãe ignorava suas emoções, você pode se apaixonar por um parceiro que faz o mesmo – e inconscientemente esperar que, dessa vez, ele mude de atitude, “veja” você e dê o amor que faltou. É como tentar reescrever um roteiro antigo, mas com um novo ator.
Sigmund Freud, pai da psicanálise, falava de algo parecido no início do século XX. Ele criou os conceitos de complexo de Édipo (para meninos) e complexo de Electra (para meninas). Segundo Freud, a criança compete inconscientemente com um dos pais pela atenção do outro, e isso molda as preferências românticas futuras. Psicólogos modernos nem sempre concordam com Freud nos detalhes – suas teorias são consideradas datadas em alguns pontos –, mas a ideia de que conflitos infantis com os pais influenciam a escolha do parceiro permaneceu. Freud observava isso na prática clínica: pacientes frequentemente descreviam parceiros que “copiavam” traços dos pais, e na terapia desvendavam esses padrões.
O que dizem as pesquisas: números e exemplos da ciência
Não é só teoria – há estudos reais que confirmam as observações. Um clássico é o trabalho de John Bowlby e Mary Ainsworth na teoria do apego (attachment theory). Eles estudaram como o estilo de apego na infância (seguro, ansioso, evitativo ou desorganizado) se transfere para relacionamentos adultos.
Nos anos 1980, pesquisadores (Hazan & Shaver, 1987) adaptaram a teoria de Bowlby para relacionamentos românticos. Eles descobriram que pessoas com apego ansioso (frequentemente por pais inconsistentes) escolhem parceiros que repetem os problemas parentais com mais frequência. Por exemplo, se o pai era evitativo (emocionalmente distante), o filho adulto se atrai por parceiros semelhantes, tentando “conquistar” sua atenção. O estudo foi publicado no Journal of Personality and Social Psychology.
Outro estudo interessante é de Harville Hendrix, autor do livro Getting the Love You Want (1988). Hendrix, terapeuta, trabalhou com milhares de casais e notou um padrão: os parceiros frequentemente carregam o “imprint” de traços parentais. Ele desenvolveu a Imago Relationship Therapy, em que casais desconstroem conscientemente essas conexões. Segundo suas observações clínicas, cerca de 80% das pessoas em relacionamentos longos veem no parceiro um reflexo de qualidades parentais – positivas e negativas.
Nem todos os estudos são perfeitos – alguns se baseiam em autorrelatos, onde as pessoas podem não perceber seus próprios padrões. Mas o panorama geral é claro: não é raro, é um mecanismo comum.
Como isso aparece na vida real: histórias que você vai reconhecer
Pense na Helena, 32 anos. A mãe era perfeccionista: criticava por qualquer detalhe, mas raramente elogiava. Helena cresceu achando que precisava “merecer” amor. Nos relacionamentos, sempre escolhe homens que no começo a idealizam e depois começam a “educá-la” – exatamente como a mãe. Um ex até dizia: “Você poderia ser melhor se se esforçasse mais”. Inconscientemente, Helena esperava “consertar” a mãe através dele: se ele finalmente elogiasse, a ferida infantil cicatrizaria. Mas o ciclo se repete e os relacionamentos desmoronam.
Ou no André. O pai era alcoólatra – ora amoroso, ora agressivo. André se apaixona por mulheres de humor oscilante: hoje paixão, amanhã frieza. Ele tenta “salvá-las”, como não conseguiu salvar o pai na infância. Exemplo clássico: projetamos o não resolvido no parceiro.
Fato curioso da psicologia: isso vale também para traços positivos. Se os pais eram carinhosos, você busca o mesmo. Mas os problemas surgem justamente com “gestalts inacabadas” – histórias emocionais não finalizadas.
Por que é inconsciente e como o cérebro nos engana
O inconsciente é esperto. Não escolhemos o parceiro pensando conscientemente: “Nossa, ele é igual ao papai, que legal!”. Não, o que atrai primeiro é a química: cheiro, voz, sorriso que lembram a infância. Neurocientistas dizem que o sistema límbico – parte do cérebro responsável por emoções e memória – se ativa. Traços familiares dão sensação de “lar”, mesmo que esse lar tenha sido desconfortável.
É um truque evolutivo: na infância, aprendemos a sobreviver nos adaptando aos pais. Na vida adulta, o cérebro repete o padrão porque “sabe” lidar com ele. Mas em vez de cura, muitas vezes vem repetição da dor.
O que fazer: caminho para relacionamentos saudáveis
Boa notícia: não é sentença. Consciência é a chave. Comece pela autoanálise: anote traços dos pais e compare com ex-parceiros. Vê semelhança? Sinal.
- Terapia: Psicanálise ou a terapia Imago de Hendrix ajudam a “desatar” o imprint. Muitos casais passam por isso e constroem novos padrões.
- Sozinho: Trabalhe as feridas infantis. Livros como O Corpo Guarda as Marcas de Bessel van der Kolk (sobre traumas) ou Attached de Amir Levine e Rachel Heller (sobre apego) são ótimos começos.
- No relacionamento: Fale abertamente. Se perceber o ciclo, diga: “Quando você age assim, me sinto como na infância com a minha mãe”. Isso quebra o automático.
Muitos, depois desse trabalho, escolhem parceiros que não repetem o passado, mas complementam. Os relacionamentos viram escolha consciente, não “remake” inconsciente.
Resumo: o amor como espelho da infância
Nos apaixonamos por “cópias” dos pais não porque somos masoquistas, mas porque queremos nos curar. É um mecanismo natural, confirmado por Freud, Bowlby, Hendrix e pesquisas modernas. Entender isso é o primeiro passo para a liberdade. Da próxima vez que sentir faísca por alguém “familiar”, pergunte: é uma nova história ou uma ferida antiga? Você merece amor sem repetições.
Fontes para quem quiser aprofundar:
- Hazan, C., & Shaver, P. (1987). Romantic love conceptualized as an attachment process. Journal of Personality and Social Psychology.
- Hendrix, H. (1988). Getting the Love You Want.
Se você se reconheceu – normal. Muita gente passa por isso e sai mais forte.