Automultilação: Quando faltam as palavras os atos aparencem
Em certos momentos da vida, sobretudo na adolescência, a angústia pode alcançar uma intensidade tal que as palavras parecem desaparecer.
Quando o sujeito não encontra recursos simbólicos para expressar o que sente, a dor interna busca outra via para se manifestar — o corpo.
É então que o corte surge como tentativa de tornar visível o que é invisível, de traduzir em carne aquilo que não pôde ser dito.
Uma história antiga
Esse recurso de fazer o corpo falar não é algo novo. No século IX, Saint Æbbe de Coldingham mutilou-se para evitar a violência sexual de invasores vikings.
Um ato extremo, que simbolizava uma tentativa de preservar-se diante de uma ameaça insuportável.
A dor física, nesse contexto, funcionou como uma barreira contra uma dor ainda maior — o trauma.
De modo semelhante, a automutilação, nos dias de hoje, pode aparecer como uma forma de defesa.
Ao invés de colocar em palavras aquilo que dói, o sujeito desloca essa dor para o corpo.
A ferida, então, passa a falar por ele.
Afinal, pensamos e elaboramos com palavras e imagens; quando estas faltam, o corpo se torna o meio de expressão do indizível.
Freud e o instinto de morte
Sigmund Freud introduziu o conceito de instinto de morte (Thanatos) para compreender as tendências autodestrutivas que habitam o inconsciente.
Segundo ele, há em todos nós uma pulsão silenciosa que busca o retorno a um estado de não-tensão, de apagamento.
Comportamentos como a automutilação podem ser manifestações desse impulso, que encontra na dor física uma via de descarga psíquica.
O psicanalista Karl Menninger, em Man Against Himself (1938), ampliou essa ideia ao sugerir que até mesmo certos “acidentes” podem carregar um propósito inconsciente de autossabotagem.
O sujeito, sem se dar conta, repete gestos que o ferem, como se tentasse, por meio do sofrimento, dar um contorno àquilo que o invade por dentro.
O papel da análise
A psicanálise oferece um espaço onde o sujeito pode, pouco a pouco, encontrar palavras para aquilo que antes só podia ser sentido.
Falar é, nesse contexto, um ato de coragem — um enfrentamento do que antes era apenas dor muda.
O percurso analítico não é feito no conforto. Ele se constrói na travessia do desconfortável, no suportar o mal-estar para que dele possa nascer algo novo.
Quando o que era vivido no corpo encontra expressão na palavra, o sujeito deixa de ser refém do sintoma e passa a ser autor de sua própria história.
A análise não elimina a dor, mas transforma a relação com ela — permitindo que o corpo, enfim, descanse da tarefa de falar o que o sujeito ainda não conseguiu dizer.
