A Arte de Cuidar: Figurações Winnicottianas nas Esculturas de Felícia Leirner
No artigo “Figurações da Relação Mãe-Bebê nas Esculturas de Felícia Leirner: Um olhar winnicottiano”, publicado na Revista Subjetividades (v. 21, n. 2, 2021), compartilho, em coautoria com Manoel Antônio dos Santos, uma reflexão que nasceu do encontro entre arte e psicanálise. Inspirada pela teoria de Donald W. Winnicott e pelas esculturas da artista plástica Felícia Leirner, busquei compreender de que modo a experiência estética pode revelar, em sua materialidade sensível, as nuances da relação mãe-bebê nos primórdios do desenvolvimento emocional.
Desde minhas primeiras aproximações com o pensamento winnicottiano, sempre me chamou a atenção a delicadeza com que o autor descreve o vínculo inicial entre mãe e bebê — um elo de dependência absoluta, sustentado por um ambiente que oferece segurança e continuidade. Esse encontro originário, em que o cuidado e a criação se entrelaçam, parece conter a semente da vida psíquica e da criatividade. Foi com essa sensibilidade que visitei o Museu Felícia Leirner, em Campos do Jordão, e me deparei com suas esculturas. Ao observá-las, percebi que conceitos abstratos da teoria psicanalítica — como fusão, ilusão, adaptação e diferenciação — ganhavam forma concreta, como se o bronze e a pedra expressassem visualmente aquilo que Winnicott escreveu sobre o início da vida emocional.
A força estética dessas obras provocou em mim uma experiência de reconhecimento silencioso. Era como se as esculturas traduzissem o “viver criativo” de que fala Winnicott — uma sensação de vitalidade e de presença diante do mundo. Essa vivência foi o ponto de partida para a pesquisa. No artigo, proponho uma leitura psicanalítica implicada, que não busca aplicar a teoria à arte, mas permitir que a própria obra revele novos sentidos sobre a experiência humana.
Para Winnicott, a criatividade não pertence apenas ao campo artístico: é uma condição essencial do viver. O indivíduo é criativo quando sente que sua existência é real e significativa, e essa capacidade nasce na relação inicial com a mãe suficientemente boa. Essa mãe — que pode ser qualquer pessoa que ocupe essa função psíquica — vive um estado de sensibilidade extrema, chamado por Winnicott de “preocupação materna primária”. Nessa fase, ela se adapta quase totalmente às necessidades do bebê, oferecendo-lhe a ilusão de que o mundo responde a seus gestos e desejos. Essa ilusão é fundamental, pois inaugura a experiência de continuidade e confiança. Com o tempo, a mãe passa a se desadaptar gradualmente, permitindo que o bebê enfrente pequenas frustrações e desenvolva sua capacidade de se relacionar com a realidade.
A partir desses conceitos, selecionei cinco esculturas de Felícia Leirner para compor o corpus do estudo: Nascimento (77), Maternidade (10), Maternidade (85), Mãe e Filha (7) e Casal com Filhos (37). Cada uma delas representa, de maneira simbólica, uma etapa do desenvolvimento emocional descrita por Winnicott: da dependência absoluta à independência, passando pelo processo de integração e de formação do self.
Em Nascimento (77), observei formas circulares e concêntricas que remetem ao útero e ao corpo do bebê em posição fetal. Essa escultura me fez pensar no início da vida física e psíquica, no momento de passagem do ambiente intrauterino para o mundo externo. O círculo externo simboliza o ambiente materno protetor, enquanto o interno expressa o self em formação — um movimento de continuidade e ruptura que marca o nascimento.
Na escultura Maternidade (10), mãe e filho aparecem fundidos, ocupando o mesmo espaço de matéria. As figuras se confundem, como se não houvesse fronteira entre um e outro. Essa fusão representa o estágio de dependência absoluta, quando o bebê vive a ilusão de que o seio é parte de si mesmo. É o início da criatividade primária, o gesto mágico de criar aquilo que será encontrado.
Em Maternidade (85), a cena muda: a mãe segura o bebê no colo e o contempla com ternura. Há uma relação de reconhecimento, um espelhamento entre os olhares. Essa escultura me remeteu ao estágio de dependência relativa, quando o bebê começa a perceber a mãe como um ser separado, ainda que profundamente necessário. O colo e o olhar da mãe simbolizam o ambiente que sustenta a integração e o amadurecimento.
Na obra Mãe e Filha (7), as figuras estão claramente delimitadas e unidas apenas pelas mãos. Essa distância, que preserva o vínculo sem fusão, representa a conquista da independência. A filha, agora criança, tem um self próprio, capaz de se reconhecer como sujeito e de se relacionar com o outro de modo autônomo. As mãos entrelaçadas evocam o laço afetivo que permanece, mesmo quando a separação psíquica já foi alcançada.
Por fim, Casal com Filhos (37) amplia o olhar para o ambiente familiar. As figuras entrelaçadas evocam o papel do pai, ou da função paterna, na sustentação emocional da díade mãe-bebê. A escultura me inspirou a pensar no valor do ambiente compartilhado, onde diferentes figuras de cuidado — independentemente de gênero ou parentesco — contribuem para o desenvolvimento emocional saudável da criança.
Ao concluir a análise dessas esculturas, percebi que elas não apenas ilustram a teoria winnicottiana, mas a expandem. Na materialidade do bronze e da pedra, a arte de Felícia Leirner faz emergir a dimensão sensível daquilo que Winnicott chamou de fenômeno transicional — esse espaço intermediário entre o mundo interno e o externo, onde a criação se torna possível. As esculturas revelam o percurso do bebê rumo à autonomia e mostram que o ato de criar, seja na arte ou na vida, nasce sempre do encontro com o outro.
Acredito que a aproximação entre arte e psicanálise é sempre desafiadora e fecunda. É preciso resistir à tentação de reduzir a obra a um exemplo teórico e, ao mesmo tempo, deixar-se afetar pelo que ela desperta em nós. O diálogo entre essas duas esferas — o sensível e o simbólico — permite uma compreensão mais profunda da condição humana e do potencial criativo que sustenta a existência.
O encontro com a obra de Felícia Leirner foi, para mim, uma experiência de escuta e de criação. As esculturas me ensinaram que o vínculo mãe-bebê, tão fundamental na psicanálise, é também uma metáfora da própria experiência artística: ambas nascem do cuidado, da presença e da possibilidade de transformar o vazio em forma, o silêncio em gesto.
Convido o leitor a conhecer o artigo completo na Revista Subjetividades e a mergulhar nessa reflexão sobre a arte, a psicanálise e a potência criativa do encontro humano. A leitura integral aprofunda o diálogo entre Winnicott e Felícia Leirner e amplia a compreensão do papel da arte como espaço de cuidado, simbolização e invenção de si.