Por que a tragédia nos força a ver uma realidade que outros não conseguem enxergar?
Uma tragédia significativa — seja a morte, uma doença grave ou uma traição profunda — é um divisor de águas. Ela não apenas altera as circunstâncias da sua vida; ela altera quem você é. A realidade, como você a conhecia, estilhaça-se, e não há como voltar a ser a pessoa de antes. Parte do processo de luto é precisamente lamentar a perda daquele antigo "eu".
Essa transformação é tão fundamental que cria, na prática, dois grupos distintos na humanidade: aqueles que já foram atravessados pela tragédia e aqueles que ainda não. E digo "ainda não" porque, com tempo suficiente, a vida garante que todos acabem por conhecer a perda. Até que esse momento chegue, no entanto, esses dois grupos coexistem em realidades quase separadas.
A Barreira do Silêncio
A linha que separa estas duas experiências é, muitas vezes, feita de silêncio. Quem já enfrentou uma dor profunda pode ter tentado partilhar o que sentia com amigos ou familiares, apenas para ser recebido com um olhar vago, um desconforto palpável e uma rápida mudança de assunto.
Não se trata de maldade ou falta de cuidado por parte deles. A verdade é que lhes falta um ponto de referência para sequer começar a compreender. A experiência da perda profunda é tão estranha ao seu mundo que as suas mentes, literalmente, não conseguem processá-la. Aprende-se, então, que falar sobre certas realidades apenas causa desconforto e que a compreensão não virá. Assim, muitos acabam por enterrar essas verdades dentro de si.
Uma Visão Adquirida pela Dor
Inicialmente, pode parecer uma maldição carregar o peso de tanta dor, especialmente quando se é um dos primeiros no seu círculo social a passar por isso. Contudo, com o tempo, essa perspetiva pode mudar. Ser iniciado mais cedo nos mistérios do sofrimento pode, na verdade, ser uma bênção disfarçada, por duas razões principais.
Primeiro, confere a capacidade de oferecer um apoio genuíno a outros quando eles, inevitavelmente, enfrentarem as suas próprias perdas, de uma forma que talvez não tenha sido possível receber. Segundo, permite uma compreensão mais precoce do que é verdadeiramente importante na vida. Descobrir isto apenas no leito de morte é, em si, uma tragédia.
A Metáfora dos Testrálios: Vendo o Invisível
A verdade psicológica de que certos aspetos da realidade permanecem invisíveis até que a perda nos toque é brilhantemente ilustrada na saga de Harry Potter. Quando os alunos chegam a Hogwarts, são transportados da estação de comboios para o castelo em carruagens que parecem mover-se por magia.
Harry, embora não seja estranho ao sofrimento, só tem um contacto direto e consciente com a morte no final do seu terceiro ano. Ao regressar para o ano seguinte, ele nota algo que nunca tinha visto: as carruagens não se movem sozinhas. Estão, na verdade, a ser puxadas por criaturas esqueléticas e aladas, com uma aparência assustadora, chamadas Testrálios.
Ele aponta-os, alarmado, aos seus amigos Rony e Hermione, que não veem absolutamente nada e pensam que Harry está a enlouquecer. Acontece que os Testrálios só podem ser vistos por aqueles que testemunharam a morte. Luna, uma colega cuja mãe morreu anos antes, vê as criaturas desde o seu primeiro dia. Ela explica calmamente a Harry que é assim mesmo, e que, embora as pessoas a achem estranha por isso, ela sabe que, eventualmente, os outros também os verão.
A inocência funciona como um escudo, mas, ao proteger, também cega. Os Testrálios são reais; é a sua invisibilidade para alguns que é a ilusão.
É inútil tentar apontar os "Testrálios" da vida a quem ainda não os consegue ver. Eles são, para essas pessoas, literalmente invisíveis. Mas não há necessidade de desespero ou frustração. É apenas uma questão de tempo até que os seus olhos também se abram para essa camada mais profunda da realidade. E é por isso que, no fim de contas, o melhor a fazer é sermos gentis uns com os outros.
Referências
- Kübler-Ross, E., & Kessler, D. (2005). On Grief and Grieving: Finding the Meaning of Grief Through the Five Stages of Loss. Scribner.
Este livro, uma extensão do trabalho pioneiro de Kübler-Ross, explora como encontrar um novo propósito após a perda, alinhando-se com a ideia do artigo de que a tragédia pode revelar o que é verdadeiramente importante. Kessler introduz o conceito de encontrar "significado" como uma fase adicional e crucial do luto, que reflete a transformação da identidade da pessoa enlutada. - Lewis, C. S. (1961). A Grief Observed. Faber and Faber.
Nesta obra profundamente pessoal e filosófica, Lewis reflete sobre a sua própria experiência de luto após a morte da sua esposa. O livro capta de forma brilhante a desorientação e a forma como a perda altera a perceção da realidade, da fé e de si mesmo. É um testemunho direto da "realidade separada" em que vivem aqueles que sofreram uma perda, um tema central do artigo. - Tedeschi, R. G., & Calhoun, L. G. (2004). Posttraumatic Growth: Conceptual Foundations and Empirical Evidence. Psychological Inquiry, 15(1), 1–18.
Este artigo académico fornece a base para o conceito de "crescimento pós-traumático". Os autores argumentam que experiências profundamente adversas, como as descritas no artigo, podem atuar como catalisadores para mudanças psicológicas positivas, incluindo uma maior apreciação pela vida e uma maior empatia pelos outros (pp. 5-8). Isto apoia a ideia de que passar por uma tragédia mais cedo pode ser "benéfico".