O Sofrimento Silencioso do Homem

Blog | Solidão

Sou Mirian Capistrano, Doutora em Psicanálise Clínica, Mestre em Neurociência e Neuropsicanálise, com Pós Doutorado em Estudos Avançados da Psicanalise e este artigo é uma prévia do meu livro, que em breve estará sendo lançado. Trata-se de uma obra que nasce a partir de anos de estudos, prática clínica e muita escuta silenciosa, aquela que emerge não apenas do consultório, mas das entrelinhas da vida. Este livro é um convite para adentrar um território pouco explorado e muitas vezes negligenciado: o sofrimento silencioso do homem contemporâneo, um sofrimento que não grita, mas adoece; que não se revela, mas consome; que não se assume, mas permanece latente nas sombras da mente e do coração masculino.

Vivemos em uma era marcada por transformações rápidas sociais, culturais, tecnológicas e relacionais que interferem profundamente no modo como os homens lidam com suas emoções e com a construção de sua identidade. A masculinidade, longe de ser uma condição fixa ou uma definição pronta, é atravessada por tensões, expectativas, exigências e contradições que pressionam o homem a ser forte, invulnerável, provedor e emocionalmente inabalável. Em muitos contextos, ele é compelido a vestir uma máscara social uma couraça que esconde suas fragilidades e o impede de expressar suas angústias. As emoções são engolidas. A vulnerabilidade é silenciada. O sofrimento íntimo, quando não acolhido, converte-se em adoecimento psíquico, violência, vícios ou isolamento afetivo. Este livro surge, exatamente, da urgência de romper esse silêncio.

A Psicanálise Clínica é o alicerce teórico que sustenta estas reflexões, permitindo adentrar as camadas profundas do inconsciente masculino. No entanto, reconhecendo a complexidade da mente humana, a Neurociência também se faz presente como apoio essencial para compreender os mecanismos neurais e os circuitos emocionais que sustentam o funcionamento psíquico. A convergência entre Psicanálise e Neurociência oferece um olhar interdisciplinar e robusto, capaz de iluminar as raízes do sofrimento masculino com profundidade e humanidade.

O ponto de partida desta obra é uma memória que ainda pulsa: meu pai, Ângelo Ferreira de Souza. Ele, que foi um homem completo em sua autenticidade, marcou minha história e minha visão sobre a masculinidade. Tinha cerca de 1,60m de altura, mas sua estatura espiritual e moral era imensa. Era pintor de automóveis, reconhecido em toda a região do Recôncavo Baiano e na metrópole de Salvador. Um homem admirado pelo talento, pela postura e pela dignidade que carregava em cada gesto. Sonhava vestir a farda do Exército, mas esse desejo lhe foi negado por uma exigência única: a altura. Não foi a primeira frustração de sua vida, mas foi a primeira cicatriz que compôs sua história. E, mesmo assim, ele seguiu, amou, lutou, trabalhou e sustentou sete filhos com fibra, responsabilidade e afeto além de outros dois que vieram antes do casamento e que a vida guardou nas sombras de uma história que nunca conhecemos por completo. Aos 53 anos, uma noite silenciosa o levou. Um infarto fulminante calou sua presença física, mas jamais apagou sua grandeza humana. Somente após sua partida, já como profissional da mente, pude compreender os sinais que antes não vi: ele lutava contra o vício do álcool. Havia um sofrimento interno que ele não sabia nomear e nós, como família, não soubemos escutar. Esta revelação tardia não apagou o amor, mas trouxe o entendimento de que muitos homens, como meu pai, sofrem calados. E o silêncio, quando não acolhido, dói mais que qualquer palavra.

Essa memória não é apenas pessoal. É um ponto de partida. É um fio condutor. É um espelho para tantos homens reais com luzes e sombras que amam, falham, tentam, resistem e deixam rastros. O “Anjinho do Céu”, como muitos o chamavam, permanece vivo na minha escrita, no meu olhar clínico e na urgência que tenho de traduzir esse sofrimento masculino para a ciência, para a clínica e para o mundo que ainda insiste em não ouvir o homem quando ele cala.

Mas essa visão não nasceu apenas da relação com meu pai. Ela foi sendo moldada também pelas vivências com meu avô paterno, Ranulfo Ferreira, o “Besouro”, e com meu avô materno, Celino Capistrano. Duas gerações, dois estilos, duas presenças que marcaram minha percepção sobre a masculinidade. Celino, com sua firmeza mansa e sua calma forte, ensinou-me os valores da simplicidade e do respeito. Já Ranulfo carregava consigo o humor rústico, a voz potente e as rigidezes típicas da cultura masculina. Foi através deles e também das convivências com tios, irmãos, primos e amigos que pude perceber, com clareza, que a masculinidade não é monolítica: é um tecido complexo de nuances, emoções escondidas, códigos silenciosos, dores disfarçadas… e sonhos que muitas vezes jamais são verbalizados.

Cada lembrança, cada pessoa e cada experiência se tornaram alicerces para o olhar clínico que hoje carrego. O homem não é apenas alguém que precisa ser forte, ele é alguém que precisa ser compreendido. Não apenas curado, mas escutado. Não apenas observado, mas acolhido. É esse olhar que norteia esta obra. Um olhar humano, clínico e científico, mas também profundamente afetivo.

A sociedade, por sua vez, frequentemente escolhe enxergar apenas os fragmentos mais visíveis e negativos da masculinidade, rotulando o homem por meio de comportamentos agressivos, impulsivos ou egoístas, sem reconhecer que, por trás de muitos desses padrões, pode existir um sofrimento silencioso e não elaborado. Ao focar apenas nas falhas e nos excessos, a cultura contemporânea reforça um olhar reducionista que transforma o homem em categoria, e não em sujeito. Esse julgamento precipitado faz com que ele seja visto como problema, quando muitas vezes é um ser humano atravessado por medos, traumas e ausências emocionais. A sociedade fecha os olhos para as raízes desse sofrimento e ao condená-lo, posterga ainda mais a chance de compreendê-lo. É nesse ponto que a Psicanálise e a escuta clínica tornam-se ferramentas fundamentais para desvelar o que está por trás do rótulo, abrindo espaço para que o homem seja visto não apenas pelo que faz, mas pelo que sente, pelo que teme e pelo que, em silêncio, luta para ser.

Convido o leitor a caminhar comigo em uma jornada que passa pelas bases teóricas essenciais, pelo entendimento da construção social da masculinidade, pelas manifestações clínicas do sofrimento e pelos desafios que encontramos na escuta terapêutica do homem contemporâneo. Esta obra não se destina apenas a profissionais da saúde mental, mas a todos aqueles que desejam ampliar a compreensão das dores silenciadas do masculino e, quem sabe, oferecer caminhos possíveis para sua transformação.

“O Sofrimento Silencioso do Homem” não é apenas um título. É um chamado. É um gesto de acolhimento. É uma ponte entre a teoria e a vida real. É uma busca por olhar para o homem com sensibilidade, ética e responsabilidade emocional. Que esta leitura inspire a criação de práticas terapêuticas mais humanizadas, que rompam os preconceitos e abram espaços de escuta verdadeira. Que possamos, juntos, compreender que a dor do homem também merece voz. E que o silêncio, quando enfim encontra linguagem, pode ser o primeiro passo para a cura.