A vida não é útil: da crítica à teleologia do sentido da vida ao sonho como ato político
Começo com uma pergunta que pode parecer estranha — até perturbadora:
E se a vida não tiver utilidade alguma?
Não se trata de pessimismo filosófico. É sobre algo que todos nós, em algum momento, sentimos na pele: a sensação de que vivemos correndo atrás de objetivos que não escolhemos totalmente. O mercado nos diz “seja produtivo”. A cultura do desempenho sussurra “renda mais”. Até o lazer virou checklist.
E se recusássemos essa lógica?
Quero investigar o que nasce quando suspendemos a demanda por utilidade. Pensar sobre desejo, clínica, política — e sobre o direito de sonhar.
Para entender essa recusa, precisamos antes compreender o que está sendo recusado: a teleologia capitalista.
Teleologia significa: algo existe “para um fim”.
No capitalismo contemporâneo, esse fim é claro: crescimento, produtividade, acumulação. A vida — a sua, a minha — é tratada como meio para sustentar essa maquinaria.
Quando perguntamos “para que serve?”, já estamos dentro dessa lógica.
Mas e se a vida não for um meio?
E se for um fim em si mesma?
Isso não é niilismo. É recusa à instrumentalização. É a diferença entre perguntar: “Qual é o sentido da vida?” (buscando uma resposta fora de nós) e “Em que direção estou levando minha vida?” (assumindo responsabilidade pelo próprio desejo).
- A primeira pergunta é teleológica.
- A segunda é existencial.
Porém, como formular essa segunda pergunta num mundo que não para de produzir respostas prontas?
Aqui entra a clínica como um espaço de resistência.
O setting analítico é um dos raros lugares sociais em que você não precisa ser útil.
Ali se pode falar do que não rende: sonhos, fracassos, repetições, afetos.
O analista não pergunta “como resolver isso rápido?”, mas: “o que isso diz sobre você?”
Esse deslocamento é revolucionário.
Ele retira o sofrimento da lógica do defeito e o reinscreve na lógica da verdade subjetiva.
O capitalismo tardio tentou colonizar até os sonhos: transformou-os em metas, promoções, consumo.
Precisamos reaprender a sonhar.
O sonho não é escapismo. É o primeiro gesto de insubmissão ao “é assim mesmo”.
- Quando uma comunidade quilombola sonha com a titulação da terra, é ato político.
- Quando um paciente sonha com uma vida além do diagnóstico, é ato clínico.
- Quando um professor sonha com alunos que pensem por si, é ato pedagógico.
Sonhar é abrir passagem para o que ainda não existe — mas pode existir.
É a semente do novo.
E ela já brota em iniciativas comunitárias, greves, coletivos, rodas de conversa, e na recusa silenciosa de aceitar a vida como mercadoria.
Fecho com uma pergunta — não para ser respondida agora, mas para te acompanhar quando você sair daqui:
Que vida ‘inútil’ você quer viver?