Por que Deus se cala diante do sofrimento?

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"Se Deus existe, por que as crianças morrem?" Para muitos, esta pergunta dolorosa é o argumento final, a prova irrefutável de que Deus não pode existir. Todos os dias, o mundo testemunha horrores que afligem inocentes, e a questão ecoa: um ser divino e benevolente permitiria tal sofrimento? A busca por uma resposta tem desafiado pensadores há séculos, e talvez, ao explorarmos suas reflexões, possamos encontrar não uma resposta definitiva, mas uma nova perspectiva sobre a nossa própria condição.

A Defesa de Deus e o Melhor dos Mundos Possíveis

A ideia de que o mal precisa de uma justificativa não é nova. Já na Grécia Antiga, o filósofo Epicuro apresentou um dilema que ainda hoje nos assombra: Se Deus quer acabar com o mal, mas não pode, ele não é onipotente. Se pode, mas não quer, ele não é benevolente. Se não pode e não quer, por que chamá-lo de Deus? E se ele quer e pode, por que o mal ainda existe?

Séculos mais tarde, o filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz ofereceu uma das mais célebres defesas de Deus. Ele argumentou que, embora o mal certamente exista, vivemos no "melhor de todos os mundos possíveis". A ideia de Leibniz é que Deus, em sua infinita sabedoria, analisou todas as configurações possíveis do universo e escolheu criar aquela com o maior equilíbrio entre o bem e o mal.

Para Leibniz, o mal se manifesta de três formas, cada uma com um propósito:

  • Mal Metafísico: A própria imperfeição inerente a tudo que não é Deus. É a condição que permite a existência, assim como o ar permite o voo. Serve como o "terreno" onde a moralidade pode crescer.
  • Mal Físico: A dor e o sofrimento. Embora terrível, pode ter um propósito. Uma dor de dente, por exemplo, é um sinal urgente para cuidarmos da nossa saúde. O sofrimento pode nos educar e nos fortalecer.
  • Mal Moral: O pecado, a crueldade, as escolhas erradas que fazemos. Leibniz argumenta que Deus não poderia eliminar este mal sem anular o maior presente dado à humanidade: o livre-arbítrio. Sem a liberdade de escolher o mal, a escolha pelo bem não teria qualquer significado.

Nesta visão, o mal é uma ferramenta necessária: ensina, pune e é a outra face da liberdade. Deus, portanto, estaria justificado.

O Terremoto da Razão e um Deus Indiferente

Essa visão otimista foi abalada de forma devastadora, não apenas por argumentos, mas por um evento real. Em 1755, um terremoto catastrófico seguido por um tsunami e incêndios destruiu Lisboa, matando dezenas de milhares de pessoas. Para o filósofo Voltaire, um crítico feroz do otimismo de Leibniz, essa tragédia era a prova cabal de que este não poderia ser o melhor dos mundos.

Em sua obra satírica "Cândido", Voltaire ridiculariza a ideia de que "tudo está bem", mostrando um personagem que repete esse mantra enquanto enfrenta as mais terríveis desgraças. Voltaire não necessariamente nega a existência de Deus, mas propõe uma alternativa desconfortável: talvez Deus tenha criado o mundo e, depois, simplesmente se afastado, deixando-o entregue à própria sorte. Um relojoeiro cósmico que deu corda na sua criação e não interfere mais em seu funcionamento. Para Voltaire, após Lisboa, a única conclusão lógica era que, se Deus existe, ele é indiferente às nossas dores.

Da Dúvida Radical à Responsabilidade Humana

Antes mesmo desse debate, René Descartes levou a dúvida a um extremo. E se tudo o que percebemos for uma ilusão? Ele imaginou a existência de um "gênio maligno", um enganador todo-poderoso que nos ilude em tudo. No entanto, mesmo nesse cenário de engano absoluto, uma verdade permanecia: o ato de duvidar provava a sua própria existência. "Penso, logo existo."

A partir dessa certeza, Descartes reconstrói a confiança na realidade. Ele argumenta que a nossa ideia de um ser perfeito e infinito (Deus) não poderia ter sido criada por nós, seres finitos e imperfeitos. Ela deve ter sido plantada em nós por esse mesmo ser perfeito. E um ser verdadeiramente perfeito não poderia ser um enganador, pois o engano é uma imperfeição. A conclusão? Deus existe e é bom. Então, de onde vêm o erro e o mal? A responsabilidade, para Descartes, recai inteiramente sobre nós, sobre o mau uso da nossa liberdade.

Immanuel Kant aprofunda essa linha de pensamento. Para ele, Deus é a causa primeira do universo e o fundamento da lei moral que existe dentro de cada um de nós. O mal não vem de Deus, mas da própria natureza humana. Kant identifica três fraquezas fundamentais:

  • A Fragilidade: A dificuldade em seguir as regras morais que nós mesmos reconhecemos como boas. Quantas vezes planejamos ser melhores e falhamos na primeira oportunidade?
  • A Impureza: A tendência de misturar motivações egoístas com ações morais. Ajudamos alguém não apenas por ser o certo, mas porque esperamos algo em troca, seja um favor ou apenas reconhecimento.
  • A Perversidade: A inclinação para priorizar o interesse próprio em detrimento da lei moral, mesmo sabendo o que é correto.

Para Kant, culpar Deus é um desvio. O campo de batalha entre o bem e o mal está dentro do coração humano.

A Morte de Deus e o Peso da Liberdade

Finalmente, Friedrich Nietzsche chega com um anúncio bombástico: "Deus está morto". Claro, não literalmente. O que "morreu" foi a ideia de Deus como a bússola moral absoluta da humanidade. Por séculos, a religião ditou o que era bom e o que era mau. Mas, segundo Nietzsche, a humanidade amadureceu e "matou" essa necessidade de uma autoridade divina, deixando um vácuo.

Para Nietzsche, culpar Deus ou o destino pelos nossos problemas sempre foi "muito humano". Com a morte de Deus, essa desculpa se foi. A humanidade ficou órfã, mas também livre. Livre para criar seus próprios valores, para se tornar sua própria bússola moral. É a chance para o surgimento do "super-homem" (Übermensch), não um ser com superpoderes, mas um indivíduo que supera a moralidade de rebanho, assume total responsabilidade por sua vida e define seu próprio propósito.

A jornada filosófica nos leva de volta ao ponto de partida, mas com uma nova bagagem. Começamos perguntando por que Deus permite o mal e terminamos percebendo que, talvez, a pergunta esteja mal formulada. A discussão nos move de culpar uma força externa para olhar para dentro. Seja o mal uma ferramenta necessária, o resultado da indiferença divina ou, mais provavelmente, o subproduto sombrio da nossa própria liberdade e fraqueza, a conclusão parece ser a mesma: a responsabilidade pelo mundo que temos recai sobre nossos ombros. E agora, depende de nós o que faremos com ela.

Referências Sugeridas

  • Leibniz, G. W. (2013). Ensaios de Teodiceia sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal. (Tradução de William de S. Teixeira). Editora Estação Liberdade.

    Esta é a obra principal de Leibniz sobre o problema do mal. A Parte I, especificamente, detalha o argumento de que Deus escolheu "o melhor dos mundos possíveis" e explora as distinções entre os males metafísico, físico e moral. A leitura oferece o contexto completo para a defesa de Deus que foi tão influente e posteriormente criticada.

  • Voltaire. (2018). Cândido, ou O Otimismo. (Tradução de Mário Laranjeira). Editora Penguin-Companhia.

    Este romance satírico é a crítica mais famosa de Voltaire à teodiceia de Leibniz. Através das desventuras de seu protagonista, Cândido, Voltaire ataca a noção de que "tudo é para o melhor". O livro é uma resposta direta e emocional ao otimismo filosófico, fortemente influenciado pelo Terremoto de Lisboa de 1755.

  • Hick, J. (1966). Evil and the God of Love. Palgrave Macmillan.

    Embora seja uma obra em inglês, este é um dos livros mais importantes do século XX sobre o problema do mal. John Hick analisa as teodiceias tradicionais (incluindo a de Leibniz, que ele chama de "Agostiniana") e propõe a sua própria, a "Teodiceia do Desenvolvimento da Alma" (Irenaean theodicy). Ele argumenta que o mal e o sofrimento são necessários para o desenvolvimento moral e espiritual do ser humano, um processo que nos torna "filhos de Deus". O livro oferece um panorama abrangente e profundo que dialoga com as ideias apresentadas no artigo.